quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Propósito do Festival da Memória Sefardita

«Os Hebreus não são servos das Nações, mas sim uma República à parte que vive e se governa com as suas Leis e preceitos que Deus lhe deu no Sinai»

Realiza~se, por estes primeiros dias de Novembro, o primeiro Festival da Memória Sefardita, uma iniciativa que decorre nas cidades de Belmonte, Trancoso e Guarda. Nas breves linhas que se seguem, tentarei responder à questão que o nome do festival introduz, que é a de saber em que consiste essa «memória sefardita». Fá-lo-ei através de uma viagem pela biografia do Doutor Fernando Isaac Cardoso, médico e filósofo, um nome grande do pensamento hebraico.

Reinava D. Filipe I de Portugal quando, cerca de 1603 ou 1604, nasceu em Trancoso (?), de uma família de cristãos-novos, Fernando Isaac Cardoso. Aí viveu até perto dos 10 anos, altura em que a família se mudou para Medina del Rioseco, ali, entre Valhadolid e Palência.

Estudou, na sua juventude, Artes e Medicina.na Universidade de Salamanca, mas foi em Valhadolid que obteve a licenciatura, passando a ocupar a cátedra de Filosofia da sua universidade (1624). No ano seguinte, obteve graus de Medicina na mesma universidade.

Encontramo-lo em Madrid, por volta de 1630. Nessa cidade publicou o seu primeiro, ainda que pouco inspirado poema. No ano seguinte, 1631, veria editado o Discurso Sobre el Monte Vesubio, obra em que se descreviam as erupções do vulcão e os seus efeitos.

Não cabe, aqui, referir todas as obras por si redigidas, mas os títulos revelam-nos um homem de largos horizontes: Panegírico y excelência del Color Verde (...), Oración Fúnebre (pela morte do seu amigo Lope de Vega), Utilidades del Água i de la Nieve, del Beber Frio y del Beber Caliente (o seu primeiro e belo tratado de medicina), De febre Syncopalí, Sí el parto de 13 a 14 meses es natural i legítimo,

A sua fama como médico era, por esses anos, enorme, tornando-o presença assídua nas casas dos grandes de Espanha. Em 1640, foi nomeado médico real de D. Filipe IV de Espanha e III de Portugal. Fama imensa: dele se dizia ser capaz de curar qualquer doença. Mas fama de pouca dura, todavia, já que a restauração da independência de Portugal, e o seu judaísmo secreto o levaram a deixar Espanha, talvez por recear as represálias que a sua condição de cristão-novo português pudesse desencadear. Dirige-se, assim, a terras italianas, onde encontrará abrigo na cidade de Veneza.

Teria cerca de 65 anos de idade quando escreveu a obra Philosophia Libera, um vasto, de sete volumes, tratado filosófico que sintetizava a sua visão do Mundo e de Deus (Diós, é o título do seu sétimo volume). Nela se defende, igualmente, a primazia judaica na obra filosófica, como se pode ler nesta passagem «com o envelhecimento das ciências entre os Hebreus, começam os primeiros balbucios entre os Gregos».

Um pouco mais tarde escreveu aquela que foi a sua última obra De Las Excelências de los Hebreos, obra de exaltação das qualidades da nação judaica, que viria s ser publicada em Amesterdão, na tipografia de David de Castro.

Morreu em Verona, em Outubro de 1683, tendo a sua obra entrado num injusto esquecimento, do qual só agora começa a ser resgatado.

A vida de Isaac Cardoso, judeu sefardita (natural de Sefarad, palavra hebraica que passou a designar a Península Ibérica) reúne em si os elementos necessários à compreensão da «memória sefardita». Em primeiro lugar, um sentimento de identidade ancestral bebido da sua família cristã-nova (família judaica forçada a converter-se ao catolicismo no reinado de D. Manuel I), sentimento que levou Cardoso a considerar-se parte do povo de Israel. Em segundo lugar a dupla identidade que só a prática escondida da religião de Moisés, como contraponto ao catolicismo forçado, supõe (Isaac Cardoso foi, durante muitos anos, um Marrano, um anusim). Vem, em terceiro lugar a emigração como possibilidade de libertação e regresso a uma prática judaica caracterizada pelo rigor ( o que, no seu caso, o levaria a romper com o seu irmão Abraham Cardoso, seguidor de Sabbataï Zevi) . Surge-nos, em seguida, a língua espanhola, usada nas suas obras como língua de cultura, a indiciar uma fortíssima ligação à Ibéria natal. Vem, por último, a constatação de que a sobrevivência do povo judaico dependia de um conjunto de factores tão diversos e mutáveis que só a constituição de enormes e complexas redes transnacionais de relações entre comunidades hebraicas poderia auxiliar. Entre a casa e o Mundo, os Judeus sefarditas construíram um cosmopolitismo fortemente ancorado na sua identidade religiosa e nacional, talvez um modelo percursor dos tempos que são os nossos. Escrevia Isaac Cardoso na Excelência de los Hebreos «(Os Hebreus ) São peregrinos que Deus espalhou pelo Mundo para ensinar aos gentios o conhecimento de Deus e dar testemunho da Sua Unidade».
Texto de Nuno Matos

Obras consultadas:
Notas Sobre la Vida y la Obra de Fernando Henrique Cardoso, Garzón, Jacobo Israel, Hebraica Ediciones, 2003
Isaac Cardoso, Vida Obra, Pensamento, Rosa, José Maria, in Lusosofia, Biblioteca Online de Filosofia, http://www.lusosofia.net/

4 comentários:

  1. Obrigado, Nuno, pelo teu post e pelo que ele nos traz de conhecimento sobre a presença judaica em Portugal.
    Ao ler-te, fiquei interessado em duas das obras de Isaac Cardoso para as quais nos chamaste a atenção: "Panegírico e Excelência da Cor Verde" e "Utilidades da Água e da Neve, de Beber Frio e de Beber Quente". Pelo encantamento que os títulos me sugerem (as heranças culturais do Renascimento são para mim como uma Flauta Mágica), pensei imediatamente em Garcia de Orta, também ele judeu e médico, também ele homem de grande transversalidade.
    Interessou-me também a referência a Sabbataï Zevi, relativamente ao qual, embora não ignorasse a sua existência, sabia muito pouco. Fui pôr-me a ler e descobrí uma série de passagens e imagens do séc. XIX relacionadas com a vida do "messias-místico". E se, nestas coisas das fontes, uma coisa leva a outra e um nome leva a outro, cheguei a Isaac Bashevis Singer, o escritor americano cujas obras proporcionaram alguns argumentos para cinema: por exemplo "Yentl the Yeshiva Boy" (1983) que Barbara Streisand adaptou logo no mesmo ano em Hollywood, num musical que conta a história de uma rapariga judia num Shtetl polaco no início do séc. XX.
    Para terminar, saliento que, tentando perceber melhor a origem da designação Marranos e/ou Anusins, fizeste-me redescobrir a história dos cristãos-novos, a sua instalação em Portugal e o modo como viveram em segredo a sua crença e prática religiosa.

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  2. Obrigado, Pedro, pelo teu magnífico comentário. A aparição de Zevi dividiu, como viste, as comunidades sefarditas, muito em particular as que se instalaram no Mediterrâneo Oriental. Quanto a Yentl, talvez não seja de todo errado recordar o conceito de Shekinah, a face feminina (e mais próxima do homem)de Deus, de que falam os cabalistas.

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  3. Nuno, é curioso falares em Shekinah, nome até há bem pouco tempo desconhecido para mim mas sobre o qual, recentemente e por completo acaso, recaiu a minha atenção.

    Shekinah é a Senhora, morada sagrada da alma e o reflexo de Deus. Da união do Senhor e da Senhora resulta a transcendência. O Céu na Terra - Binah e Malkuth são os seus domínios celestiais e terrenos, respectivamente, na Árvore da Vida cabalística.

    Perdoa-me mas não resisti a esta exaltação do Feminino. :)

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  4. Fizeste bem em não resistir. A Shekinah aparece muitas vezes desiganda por Noiva. Isaac de Lúria, um dos grandes cabalistas, assim a trata.

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