quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Em foco

Transcrito da edição de hoje do jornal Público, deixo este excerto de artigo para leitura.
Valerá talvez a pena reflectir no legado cultural que se anda a formar para o futuro dos portugueses.

"O novo português não precisa de se concentrar - precisa de se "focalizar". Não tem de ser resistente - tem de ser "resiliente". Não imprime um texto - "printa". E não tem esperança - tem "ilusão".
No domingo passado, quando as televisões anunciaram os resultados das sondagens, o nome que se ouviu nos vários canais abertos nacionais foi Cavaco Silva. Mas para quem assistiu aos programas de análise do processo eleitoral, o verdadeiro vencedor foi outro: a palavra "focalizar".
Toda a gente "focalizou" na noite de domingo: ministros disseram que era hora de nos "focalizarmos" nos verdadeiros problemas do país, comentadores políticos abriram as suas intervenções assinalando que iam "focalizar-se" no discurso vingativo de Cavaco, membros dos media interromperam-nos para fazer a emissão "focalizar-se" neste ou naquele hotel onde políticos de ar muito - como dizer? - "focalizado" se aprestavam a começar os seus discursos. Foi, sem dúvida, uma vitória estrondosa.
Até há uns anos, quando a pessoa A achava que a pessoa B estava desconcentrada dizia: "Tens de te concentrar." Hoje, se quiser fazer-se entender, terá de dizer: "Foca-te."
O verbo "focalizar" usado - como tem sido - no sentido de "concentrar" é um anglicismo e deriva do inglês "to focus". Por interferência fonética chega-se ao verbo "focar". A este tem sido recentemente aplicado o sufixo "izar". O resultado, "focalizar", é um neologismo semântico, uma palavra que já existia, com um sentido restrito, e que ganhou um novo sentido.
Este é apenas um dos muitos casos de deturpações que se têm infiltrado na língua portuguesa, tornando-se de uso corrente. Já tínhamos o "salvar" (no sentido de "gravar") vindo de "to save"ou "printar" (no sentido de "imprimir") vindo de "to print". Mas recentemente há toda uma nova vaga de neologismos semânticos, que vão de "realizar" (no sentido de "aperceber-se de") a "ilusão" (no sentido de "esperança").
Pergunta fatal: devemos começar a preparar as exéquias à língua portuguesa?"

2 comentários:

  1. Interessante...
    Já tinha reparado no uso e abuso das "focalizações", mas é total novidade para mim o emprego de "ilusão" em vez de "esperança"!
    Arrepiou-me o "printar"...

    No entanto, não concordo com o tom "Velho do Restelo" do artigo. Desde sempre que oiço falar nas exéquias da língua portuguesa, mas não nos podemos esquecer que a língua é um mecanismo vivo, em constante evolução... novas palavras surgem e palavras "velhas" adquirem novos sentidos...

    Atenção que aceitar a mudança não implica aceitar o mau falar e o mau escrever (são duas questões diferentes!)

    Mas já me cansa este discurso purista de sempre...

    Que diria então um romano, no seu tempo, se ouvisse a palavra "parvus" (pequeno) empregue no sentido actual - tolo, néscio?

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  2. Julgo que o incómodo do autor do artigo não será tanto por conservadorismo perante as eventuais oscilações e dinâmicas da língua, mas antes pela demasiada permeabilidade à cultura anglo-saxónica e pela forma excessiva como esta pode estar a canibalizar outras culturas e identidades.

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