quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

As Horas

O seu único dom era conhecer as criaturas quase por instinto, pensava, seguindo o seu caminho. Se a deixavam numa sala com alguém, eriçava-se como um gato; ou ronronava. Devonshire House, Bath House, a casa da cacatua chinesa, vira-as uma vez, iluminadas; e recordava Sylvia, Fred, Sally Seton - quanta gente; e o baile a noite inteira; e as carroças a caminho do mercado; e o regresso de automóvel pelo Parque. Recordava que uma vez lançara um xelim na Serpentina. Mas recordar, todos recordavam; o que ela amava era isto, aqui, agora, na sua frente; a senhora gorda no carro. Importava então, indagava consigo, encaminhando-se para Bond Street, importava de facto que tivesse de desaparecer um dia, inevitavelmente? Tudo aquilo continuava sem ela. Sentia-o? Ou seria um consolo pensar que a morte acabava com tudo, absolutamente tudo? Ou, de qualquer maneira, pelas ruas de Londres, no fluxo e refluxo das coisas, talvez sobrevivesse, Peter sobrevivesse, vivessem um no outro, ela fazendo parte, estava certa, das árvores de casa; daquela casa ali, tão feia, toda a cair em pedaços como estava; parte de gente que nunca encontrara; espalhada, como uma névoa, entre as criaturas que melhor conhecia e que a sustentariam nos seus ramos, como vira as árvores sustentar a névoa, embora isso espargisse tanto a sua vida, e a si própria...
Virginia Woolf, Mrs. Dalloway


Philip Glass - The Hours

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