sábado, 18 de junho de 2011

pequenas memórias

de José Saramago (16 de Novembro 1922 - 18 de Junho 2010)

(...) No lado direito do mesmo andar (ainda não saímos da Rua Padre Sena Freitas) morava uma família composta de marido e mulher, mais o filho de ambos. Ele era pintor numa fábrica de cerâmica, a Viúva Lamego, ali ao Intendente. A mulher era espanhola, não sei de que parte de Espanha, chamava-se Carmen, e o filho, um garotito loiro, teria, por esta altura, uns três anos (é assim que eu o recordo, como se nunca tivesse crescido durante o tempo que ali vivemos). Éramos bons amigos, esse pintor e eu, o que deverá parecer surpreendente, uma vez que se tratava de um adulto, com uma profissão fora do comum no meu minúsculo mundo de relações, enquanto eu não passava de um adolescente desajeitado, cheio de dúvidas e certezas, mas tão pouco consciente de umas como das outras. O apelido dele era Chaves, do nome próprio não me lembro, ou nunca o cheguei a saber, para mim foi sempre, e apenas, o Senhor Chaves. Para adiantar trabalho ou talvez para cobrar horas extraordinárias, ele fazia serão em casa, e era nessas alturas que eu o ia visitar. (...) Eu gostava de o ver pintar os barros, cobertos de vidrado por fundir, com uma tinta quase cinzenta que, depois da cozedura, se transformaria no conhecido tom azul deste tipo de cerâmica. Enquanto as flores, as volutas, os arabescos, os encordoados iam aparecendo sob os pincéis, conversávamos. (...) um dia levei-lhe uma quadra ao jeito popular que ele pintou num pratinho em forma de coração e cuja destinatária seria a Ilda Reis, a quem começara a namorar. Se a memória não me falha, terá sido esta a minha primeira "composição poética", um tanto tardia, diga-se em abono da verdade, se pensarmos que eu ia a caminho dos dezoito anos, se não os havia cumprido já. Fui felicitadíssimo pelo amigo Chaves, que era de opinião que deveria apresentar-me a uns jogos florais, esses deliciosos certames poéticos, então muito em voga, que só a ingenuidade salvava do ridículo. O produto do meu estro rezava assim: "Cautela, que ningúem ouça / O segredo que te digo: / Dou-te um coração de louça / Porque o meu anda contigo." Reconheça-se que eu teria merecido, pelo menos, a violeta de prata... (...)

José Saramago, As Pequenas Memórias, Caminho, 2006 (texto com supressões)

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